segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

zurro




  Poderia enumerar nossos erros. Começo a escrever como quem parte de um ponto conhecido por todos. Tanto afoga. Mágoa mal resolvida e inspiração plástica. A fumaça do carvão, a bruma do amanhecer, o nevoeiro da tempestade, a chaminé da fábrica. Tanto pó de ferro mata. O peixe foge, afunda, transcende. A escola esmorece, a sala fica vazia, as crianças moribundas. A sombra da árvore emagrece, o câncer precipita, ambição é reprodução incessante. Fulgura nos ideais a fome. Janta! Adormece o tato, esguio, tato senil, aflito, tato dúctil, gostosamente falho. Erroneamente arrogante, serenamente bobo, magicamente inútil. Mente, mente, mente, mente. Basta, besta, bosta. Cana, canela, casa. Doa, dizem, drama. Fuga, fogo, fode. Garoa, grita, gosma. Hoje, haja, hora. Junta, jóia, janela. Lembra, lambe, louca. Mata, mete, morre. Nada, nunca, noite. Pesa, ponta, parti. Queima, queixa, quinto. Roa, rasga, ri. Silencia, santa, sirva. Tudo, toma, teu. Vai, ventania, verme. Xeque, xaxim, Xangô. Zíper, zinco, zodíaco. Um zurro. Um zurro. Um zurro...

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

cai(a)do


Encosto o queixo no muro de chapisco. Caiado recentemente. Olho a rua. Crianças que não me conhecem, carros barulhentos, velhos transeuntes. Apoiado na casinha da bomba d'água. Ao lado do portão, perto do copo com água, olho de boi, uma vela, um maço de cigarro, espada de são jorge e uma imagem. Nunca entendi essas "proteções", mas isso não é da minha ossada. Os antigos soam como hienas maléficas quando retumbam dizeres mais antigos do que eles mesmos. Ainda olho o mundo do qual não participo. O portão distante, azul descascado. Alumínio ou ferro. Metal. Aquele barulho de bola, que assusta a gente quando bate. "O que é isso?" É a bola. "Entra!" O mundo lá de fora some. Olho o caiado, o portão, a bomba, o "santo". Deixo para trás o que não é da minha ossada. Férias escolares. Morrer tem vários significados, mas nunca imaginei que durasse 2 semanas de junho e 30 dias de janeiro. Duas vezes ao ano começo a morrer e a me segurar pelas beiradas da casa. Cativeiros silenciosos. A cama recebe doses massivas da minha alma. O travesseiro pesa e minha sorte é o muro relativamente baixo. Não tem mais desenhos legais, não tem Tv a cabo e nem livros. Mas eu não sabia dos livros, eles me salvaram muitos anos depois. A rua me salvou mais. A gente ia morrendo. Duas semanas de junho, trinta dias de janeiro. Filmes repetidos, 6x6, uma coruja no varal. Filmes. Os filmes me salvavam. Mas eles estão sumindo. A gente vai se relacionando com outras coisas, essa prisão do presente é tão constante. Agora é agora e agora é agora. Foi. A gente segue. O muro está lá. Caiado. Sempre caiado. Já não subo mais na casinha da bomba, pode quebrar. A bomba velha, desligada, sem uso. A rua mudou e eu não cresci nela. Morria enquanto o universo expandia-se. Vejo pessoas se reunindo. Sou um fantasma. "O menino do muro." "Queixo de cal." "Você é bonito." Surpresa. O portão enferrujado, o muro recém caiado. Um táxi. "O boteco tal por favor."

teste



 70 MB de música. Uma pasta de The Smiths, um arquivo de Sennet, algo sobre a corrosão do caráter, fotos no insta. Bytes, bytes e bytes. A memória orgânica soa tão pequena nesses abismos onde o cotidiano flerta de forma tão indecente com a tecnologia mais barateada do mercado. Nada de roupas prateadas ou carros voadores. Ainda falta saneamento básico, tratamento de resíduos, nos matamos com facilidade e odiamos de forma lúdica, quase poética. Estou sendo raso e inflexivo, mas não cabe aprofundamentos, não mais. Corro o risco de ser idiota. Isso é preocupante? Nem um pouco. Depende de quem é o observador/julgador.
 A solidão é um bicho grande e debochado que sapateia no coração da gente. Rouba a sombra da árvore e aquelas memórias valiosíssimas de pessoas sendo amáveis nos dias morosos. Aquelas pessoas ficam nos poros. Parece esquecimento mas não é. Fossilizamos aqueles gestos em nós mesmos. Um pouco de café, um pouco de coragem.
 Parece absurda a tua ausência. Encaro sérios problemas com meu armário. Portas quebrando, gavetas sem puxador, poeira valente e minha fúria transferida. Madeira que não é madeira. Nem lembro quantas parcelas custou. Anda tudo rápido e incondicional demais. Tolo.


 Não vem. A ideia violenta. Não vem. A poesia daquele russo. Não vem. O trem no horário, a vontade de estudar para o concurso, a roupa passada depois de secar, a música favorita no rádio, a lua depois de um dia tacanho. Não vem. Não tem. Não vem, não vem, não vem...

sábado, 13 de fevereiro de 2016

B'al dê


 Cai a primeira gota, a segunda, a terceira misturada com a quarta, quinta e o fluxo. Desce num fluxo e preenche. Falta pouco até à boca. Limite, sem tampa. A anca dobrada denuncia a posição. Esfrega, esfrega, esfrega. Espuma, sabão. Cor saí. Peso aumenta. Cor entra, peso aumenta. Não tem seca. Mãos enrugadas. Canções. Boleros antigos, fados perdidos, um pouco de samba, um tanto de Chico. Carros ao longe, pássaros ao longe. Esfrega, esfrega, esfrega. Tira o sabão. Troca o líquido, a canção, o turno. Algumas horas, dor nas costas, esvazia, volta e dorme. Drena. Acorda. Nossa vida.
 Ela me carrega na cabeça, abastecido de trouxa. Sou de alumínio, batido, antigo, sou um velho amigo. Durante junho recebo simpatias. Muita água e papéis. Nomes masculinos. Rui, Tiago, Pedro, Fernando, Arquimedes. Um santo Tônho fica do meu lado. Isso dura três ou quatro dias. Esse ano durou apenas dois. O tempo passa e ela envelhece. Ainda canta, ainda me leva na cabeça e preenche de água. Lava a roupa, põe ao sol e depois me preenche novamente com a roupa seca. Fico na beira do rio. Barulho de água correndo e sua melodiosa voz. Uma tristeza pequena nas notas longas e uma satisfação inexplicável na nossa cumplicidade. Ela olha seu reflexo na água que retenho. Sou um espelho rústico, a sua voz invisível. Existo para ser útil e dar um breve sentido a existência dela. Não consigo dizer o quanto ela é maior, larga. Ela não me ouve. Derramo algumas gotas e ela acha que é o vento. Talvez seja. Volto na cabeça dela. Casa. Uma solidão. Fico num canto certo. Amanhã volto com ela. Beira de rio. Água doce, inferno bobo. As vezes é tipo uma lembrança que a gente não entende muito bem. A mãe dela disse certa vez, quando ela ainda era uma menina, cuide bem do seu companheiro. Tudo tão estranho. Líquido. Sempre líquido. Alumínio batido, mãos enrugadas, água doce. Balde...